Thursday, 12 November 2009

Diário de Bordo - Paquistao

De acordo com os ensinamentos islâmicos, receber visitas é considerado uma expressão da benção de Deus e até mesmo o muçulmano mais pobre sairá de seu rumo para ajudar o próximo, nunca esperando algo em troca...

Isso é o Paquistão! Apesar da sua imagem deteriorada e de sua má fama de pais terrorista, o Paquistão possui um dos povos mais hospitaleiros da face da Terra. Para nós, foi uma surpresa cruzar a fronteira India/Paquistão e encontrar pessoas tão diferentes e amigáveis do lado de cá. Todo paquistanês que cruzava o nosso caminho ou com quem conversávamos nos dava a mão e as boas vindas ao seu pais. Queriam saber de onde viemos, se achávamos que viajar por ali era perigoso, se estávamos gostando... e quando falávamos que estamos adorando, ficavam todos orgulhosos.

O Paquistão, cujo significado é Terra da Espiritualidade Pura, possui apenas 60 anos de existência. O pais foi criado quando a Inglaterra, exausta depois da Segunda Guerra Mundial, percebeu que não teria mais condições de manter todo o seu império unido. Então, em 1947, os ingleses tiveram que abrir mão da “Jóia da Coroa”, India, e declarar sua independência. Primeiramente, os ingleses queriam deixar para trás um único país, porém os indianos muçulmanos estavam receosos de serem reprimidos pela maioria hindu. Sobre a liderança de Mohammed Ali Jinnah, os muçulmanos persuadiram os ingleses de que deveriam ser criados dois paises distintos: India e Paquistão e, após muita relutância, a Inglaterra desenhou uma linha no mapa demarcando os dois territórios. A demarcação teve nexo apenas no papel, pois na realidade tornou-se um pesadelo, pois resultou num dos maiores movimentos humanos. Milhares de muçulmanos deixaram suas casas e trabalhos e mudaram-se a pé ou de trem para as áreas que se tornariam o Paquistão e, enquanto eles iam para oeste, encontraram milhares de hindus viajando em direção contrária, resultando em uma guerra sangrenta. Durante o tempo em que os líderes indianos puderam reestruturar seu pais baseados no legado deixado pelos britânicos, os paquistaneses tiveram que construir seu pais do zero.

Após a independência, o Paquistão era uma nação dividida em duas partes, leste e oeste, com mais de 1.000km de distância entre elas. As dificuldades para governar dois territórios separados foram enormes e foi inevitável a sua separação, a qual aconteceu em 1971, após mais uma sangrenta guerra, quando o Paquistão do leste tornou-se Bangladesh.

Mesmo tendo sido desenhada a divisão entre India e Paquistão, o território de fronteira, que se chama Caxemira (norte), até hoje está sendo disputado no mais alto campo de batalha do mundo, a 6.000m de altitude. Temperaturas de -50˚C, ventos fortes e ar rarefeito mataram mais soldados do que a própria disputa, que apesar do atual cessar-fogo, está longe de ser resolvida.
Depois de tantas guerras trágicas, aconteceu o episódio de 11 de setembro e o governo paquistanês entrou na luta contra o terrorismo, apoiado pelos Estados Unidos. Muitos não-muçulmanos, pessoas que trabalham para o governo e policiais passaram a ser o alvo dos fundamentalistas Talibãs,. Além de tudo isso, o pais ainda possui problemas com suas diversas tribos existentes em seu território, das quais, algumas lutam por independência, e outras, aplicam suas próprias leis em seus territórios onde o governo não possui nenhum poder.

Bom, mas deixando toda a história de lado, vamos falar um pouco de nossas experiências por lá...

Quando entramos em território paquistanês, seguimos direto para Islamabad (capital) por uma rodovia perfeita e sem comparações com as estradas indianas. Foi um alívio ver as coisas mudando da água para o vinho e tornando-se mais organizadas e limpas.
Na capital, fomos surpreendidos quando encontramos um camping para turistas bem no meio da cidade. Lugar perfeito para montar acampamento e organizar as nossas coisas. Islamabad é uma cidade planejada e muito diferente de todo o resto do país. Cada bloco possui o seu comércio, que é cheio de vida e comidas que nunca mais tínhamos visto, como carne de boi.
Logo ali do lado, na cidade vizinha Rawalpindi, pudemos apreciar uma das mais importantes e significativas artes do país, a decoração e ornamentação de caminhões. Mais impressionante do que ver os acessório e como eles são feitos, é ver um típico caminhão paquistanês rodando pelas estradas. Existe até uma competição entre eles, onde ninguém quer ficar para trás e sempre querem ter o caminhão mais bonito e mais decorado. Um caleidoscópio de cores e enfeites que animaram a nossa viagem pelas ruas e rodovias do Paquistão. Nem as motos, tuk-tuks e tratores escapam e são cheios de penduricalhos.

Porém, o nosso maior objetivo nesta parte da Ásia era dirigir por uma das rodovias mais bonitas do mundo, a Karakoram Highway. Esta rodovia com 1.200km foi construída entre 1966 e 1982, através de uma parceria entre Paquistão e China com o objetivo de ligar os dois países através do Passe Khunjerab (4.730m de altitude). Deslizamentos, calor, frio, e acidentes tiraram a vida de um paquistanês a cada 1.5 quilômetros. Além desta massiva obra, essa região é muito famosa por possuir a maior concentração de picos altos e glaciares do mundo, incluindo o K2 de 8.611m, segunda montanha mais alta do planeta, além de ser cheia de história e cultura. Foi através dela que o budismo se espalhou pela China e Tibet, por ela que o islamismo chegou ao Paquistão e a região foi palco da luta entre ingleses e russos pelo Afeganistão.
Colocamos o pé na estrada e lá fomos nós sentido o norte. Uma das grandes vantagens dessa rodovia é que ela não é cheia de sobe e desce, mas sim, vai acompanhando o Rio Indus e subindo aos poucos. As primeiras cidades foram tumultuadas e com bastante trânsito, porém, quanto mais subíamos, melhor a estrada ficava e mais impressionante a paisagem se tornava.

O tempo não estava dos melhores, pois havia uma espécie de fumaça no ar e não podíamos enxergar muito longe, tampouco ver as montanhas com muita definição. Portanto, os melhores momentos da ida foram com as pessoas. O Paquistão possui uma grande diversidade de pessoas e o que mais nos chocou neste pais foi a predominância masculina, onde vilas eram dominadas por homens e nenhuma, mas nenhuma mulher mesmo, era vista. Muitas vezes a Michelle se sentia incomodada, pois mesmo toda coberta com roupa comprida e lenço na cabeça, ela chamava a atenção, sendo a única mulher nas ruas e restaurantes.

A Karakoram é cheia de postos policiais, pois além de seus limites é uma terra sem leis, onde as tribos ditam as regras e o governo não tem muita interferência. Numa de nossas primeiras noites por lá, achamos um lugar bem legal e com uma linda vista a beira da estrada para passar a noite, mas quando estávamos prestes a ir para a cama, escutamos uma sirene e 3 policiais vieram nos avisar que era muito perigoso passar a noite por ali. Nos aconselharam segui-los e acampar no posto policial. Nos convidaram para tomar chá, como em todos os lugares que fomos por lá, e até nos trouxeram pão e molho para a janta. Sempre querendo ajudar!!
Nos dias seguintes foi a mesma história. Era só pararmos em um posto policial e eles já nos convidavam para um chai (chá). Depois de tanta hospitalidade, chegou a nossa vez de ajudar também. Um carro havia sofrido um acidente, quando vinha em alta velocidade e após passar um monte de areia, que havia se acumulado sobre a estrada, rodou e desceu de ré um barranco de uns 6m de altura. Os 3 passageiros foram sortudos que o carro parou a 1cm de cair do muro de contenção, onde seriam mais muitos metros de barranco até o rio. Colocamos nosso guincho para funcionar e puxamos o carro barranco acima assistidos por uma platéia de curiosos barbudos. Em menos de uma hora, o carro quase que intacto e os passageiros a salvo, continuaram sua viagem e nós a nossa. O cenário a cada quilometro era mais espetacular, com montanhas cada vez mais altas e nevadas. Duas partes de todo o trajeto nos chamaram mais a atenção por sua beleza: as cidades de Ghulmet e Karimabad, rodeadas por picos de mais de 7.000m de altitude; e o vilarejo de Passu, com seus glaciares e as montanhas pontudas que formam as catedrais. A vontade era de não sair mais dali...

Nos últimos quilômetros, mais precisamente 85, subimos cerca de 2.000m de altitude e passamos por um dos vales mais estreitos da rodovia até chegarmos no Parque Nacional Khunjerab. As paredes deste vale são compostas por um pedregulho preto, o que origina o nome kara koram. Acampamos a 4.050m de altitude e a uns 17km do passe, onde tivemos uma noite congelante o que realmente contrastava com o calor de mais de 40 graus que vinha fazendo nas partes mais baixas. O Parque Khunjerab é o habitat de um grande carneiro chamado Marco Polo, o qual possui um chifre encaracolado e que é muito raro (cerca de 100 exemplares que só existem neste parque), além dos chifrudos ibex, marmotas cor de ouro, lobos e leopardos da neve.

A paisagem lá no topo era espetacular, longa, plana, com rios e lagos congelados, montanhas fantásticas e cheias de yaks pastando. Passamos algumas horas curtindo o lugar e até colocamos um pé na China, mesmo que só por debaixo do portão. A China não faz parte de nossos planos nesta viagem, mas confessamos que a vontade de continuar pela rodovia e desbravar o território chinês foi enorme. Depois de mais um convite para chá, tomamos nossa caminho de volta. Pensamos que iria ser uma volta entediante, vendo as mesmas paisagens e vilas, porém o cenário foi totalmente diferente indo no outro sentido. As montanhas eram vistas de outros ângulos, outras eram a primeira vez a serem vistas e o melhor, o tempo mudou de 8 para 80 e o céu azul tornou tudo muito mais bonito e mais claro do que na vinda. A cada curva dávamos um suspiro, pois a paisagem era mesmo de tirar o fôlego.

Foram apenas oito dias que passamos neste lugar e sabemos que não foi o suficiente devido haver muita coisa para se explorar por lá. Com certeza, voltaremos novamente para a Karakoram Highway, ou de carro, ou de bicicleta, ou simplesmente para fazer umas das diversas caminhadas que são possíveis de se fazer nas montanhas paquistanesas.

Dois dias de descanso em Islamabad e pisamos no acelerador sentido Irã. Foram 4 longos dias de viagem, onde nos dois primeiros, com um calor de 45 graus, cruzamos diversas cidades mais ao sul do país e nos outros dois, com o mesmo calor, cruzamos o Deserto do Baluchistan. Tínhamos que dirigir com a janelas fechadas, pois o vento que vinha de fora era de queimar a pele, mas o cenário desértico e montanhoso foi compensador e os pequenos vilarejos no caminho pareciam uma coleção de abrigos de barro, secos e sujos.

Viajar pelo Paquistão foi uma das melhores experiências que tivemos em nossas vidas. Quebramos paradigmas e imagens distorcidas e conhcemos a realidade desse pais tão enigmático e hospitaleiro e isso, levaremos para nossa vida toda.

In Sha’ Allah, nos vemos no Irã!

PS 1 - Uma particularidade entre os homens paquistaneses é o modo de cumprimentarem-se. Por ser uma sociedade masculina, falta de afeto constante com uma mulher e restrições religiosas, os homens são muito sinestésicos com seus amigos e companheiros. Abraços apertados, dar as mãos e segurá-las durante uma conversa, andar de mãos dadas na rua é algo muito comum de ser ver. Para nossa sociedade isso seria motivo para um Mmmhhh (o que nós dois fazíamos quando víamos essas cenas), mas que para eles é muito normal e não afeta em nada a sua masculinidade. Quando o Roy chegava a primeira vez para conversar com eles, todos davam as mãos, mas se os encontrássemos pela segunda vez, já vinham para o abraço. Ainda bem que não encontramos ninguém pela terceira vez...

PS 2 – Se o Roy era recebido com apertos de mão e abraços, a Michelle, pelo contrário, era muitas vezes ignorada e nem a olhavam na cara. Se precisávamos receber algum troco ou alguma informação nunca ninguém falaria com ela, somente com o Roy. O engraçado era vê-los muitas vezes surpresos, pois ao invés de ela ficar submissa e quieta no canto dela (comportamento normal de uma mulher muçulmana), ela se metia nas conversas e nos acontecimentos e todos a olhavam com um olhar de choque.

PS 3 – Depois dos comprimentos e do convite para o chá, vinham os imensos questionários a serem respondidos, e sempre eram as mesmas perguntas.

- Que pais?
- Com o que você trabalha?
- Amiga ou esposa? Essa sempre temos que mentir aqui na Ásia, pois para a cultura deles, um casal estar viajando juntos e não ser casado é um absurdo. E se falamos que não, temos que explicar pra eles como isso funciona e isso é praticamente uma tarefa impossível. Um guarda até chegou a comentar conosco, indignado, que existem vários casais que vão viajar e são apenas namorados.
- Vocês não tem filhos? Por quê? Não precisamos explicar a difícil questão de sermos namorados e estarmos viajando juntos, mas temos que explicar o porque que não temos filhos depois de casados. Para um muçulmano, ter muitos filhos é uma dádiva de Deus e é ele que decide quantos você terá (três, cinco, sete ou mais que dez!!).
- Sem banho? Quando nos encontravam em nosso acampamento, sempre vinham com essa pergunta, pois nunca viam um chuveiro em nossa casa. Para eles, a limpeza é muito importante e eles são meio que vidrados nisso, portanto lavam-se antes de comer, de orar, de dormir, depois da relações sexuais e tudo mais... e ver-nos naquele calor infernal e sem banho, era um tremendo baque para eles. Mas nós tomamos banho, viu?

Fonte e mais fotos: http://www.mundoporterra.com.br/diario/diario-de-bordo-no-36---paquistao/

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