As monumentais obras arquitetônicas de Dubai, no Oriente Médio, são o lado mais vistoso de uma experiência econômica e cultural que pode indicar uma resposta ao choque entre o Ocidente e o Islã. Pequeno e com o petróleo quase esgotado, o emirado cresce a um ritmo mais acelerado que a China graças à capacidade de mirar na diversificação da economia. A base da estratégia é vender o minúsculo reino como um porto seguro a empresas estrangeiras, investidores e turistas, em meio ao conturbado mundo árabe.
Nos manuais de etiqueta para executivos no exterior e em guias de viagem de Dubai, são apresentadas algumas regras que os estrangeiros em visita à cidade-estado deveriam seguir para não ferir os costumes muçulmanos. Recomenda-se, por exemplo, que as mulheres se vistam de maneira conservadora, com saias longas e mangas compridas, e que não se tente marcar compromissos de trabalho na sexta-feira, que para os muçulmanos é o dia de descanso e de rezas. Algumas horas em Dubai e logo fica claro que essas orientações são desobedecidas sem cerimônia a todo instante – e ninguém parece se incomodar seriamente com isso. O que dizer das turistas loiras passeando no shopping com as pernas vermelhas do sol e usando shortinho de dar inveja às foliãs do Carnaval de Salvador? O máximo que se ouve é algum residente local, sentado em um café de uma rede americana, dizendo quase em tom de piada: "Russas...". Tampouco alguém parece se importar quando vê casais gay trocando carícias comedidas dentro dos centros comerciais ou no hall de hotéis. Isso em um país em que um xeque tradicional tem o poder absoluto, as mulheres usam manto negro e cobrem os cabelos e as disputas familiares obedecem à sharia, o rígido conjunto de leis baseado em escritos religiosos milenares. Disneylândia árabe, Las Vegas do Oriente Médio, Xangai do deserto, Dubai merece também uma outra classificação. Para os céticos que crêem na incompatibilidade do mundo islâmico com a cultura ocidental, o pequeno e florescente emirado é apresentado como o laboratório onde está sendo criado o antídoto contra o choque de civilizações.
A fórmula de tolerância de Dubai, uma das sete cidades-estado que compõem os Emirados Árabes Unidos, confederação que tem o Golfo Pérsico de um lado, a Arábia Saudita do outro e um mar de petróleo embaixo, consiste em uma cultura disseminada entre a população de pensar com o bolso. Todos os moradores da cidade – e nisso os cidadãos de Dubai se equiparam aos estrangeiros – parecem concentrados em uma só meta: ganhar dinheiro. A intolerância cultural, nesse contexto, seria incompatível com o desejo de atrair cada vez mais investimentos externos e de aumentar o já alucinante número de turistas que visitam a cidade a cada ano – o equivalente a cinco vezes a população permanente de 1,2 milhão de pessoas. "De nossa cultura, certamente vamos conseguir manter as roupas típicas, a culinária e a música", contabiliza o xeque Ahmed bin Saeed Al Maktoum, presidente da estatal Emirates, a companhia aérea que mais cresce no mundo, com 50 bilhões de dólares investidos apenas na compra de novas aeronaves. No início de outubro(2007), a Emirates inaugura o primeiro vôo direto ligando São Paulo a Dubai, diariamente. "O mundo está mudando em relação à maneira de fazer negócios e, se queremos fazer parte dessas transformações, temos de ser abertos e tolerantes", diz o executivo, que é tio de Mohammed bin Rashid Al Maktoum, o chefe da família reinante em Dubai.
SOL, NEVE, COMPRAS Dubai recebe 6,1 milhões de turistas por ano, o equivalente ao número de estrangeiros que visitam o Brasil, país com território 2 200 vezes maior. A taxa de ocupação média dos hotéis é de 85% (contra 64% no Brasil). Os turistas são atraídos pelos paraísos artificiais nos hotéis imensos, pelas compras em shoppings que têm até pista de esqui e pelos eventos esportivos como o Dubai World Cup, de corrida de cavalos.
Uma boa maneira de decifrar Dubai é observar os cartazes de propaganda e as placas de rua. Logo na chegada ao moderno aeroporto internacional vêem-se os anúncios de bancos e consultorias que prometem ajudar os clientes a fazer seus negócios sem ferir as regras islâmicas – os empréstimos a juros, por exemplo, são proibidos, mas sempre se encontra um malabarismo financeiro que permite a uma empresa tomar dinheiro sem ficar mal com a lei divina. Igualmente reveladoras são as inúmeras placas que indicam o caminho para chegar a lugares que ainda não existem ou nem sequer podem ser visitados. A cidade não está pronta, mas aponta freneticamente para o futuro. Das três ilhas artificiais em forma de palmeira que vão abrigar 100 hotéis e dezenas de milhares de residências, por exemplo, apenas uma, a Palm Jumeirah, já foi parcialmente inaugurada. Qualquer mapa turístico de Dubai, no entanto, indica a localização de cada uma delas. O padrão estético desses empreendimentos é escancaradamente mirabolante – de perto, as casas parecem formar um condomínio temático das Mil e Uma Noites –, mas atende um público que parece querer exatamente isso: muito dourado, muito mármore, muita coisa gritando dinheiro. Quando começou a criar a infra-estrutura para tornar Dubai um destino turístico de luxo no Oriente Médio, na década passada, o governo dos xeques logo percebeu uma séria limitação geográfica: a natureza só lhes deu 70 quilômetros de costa (contra os 8.000 quilômetros do litoral brasileiro), constituídos de mar de um lado e deserto do outro. A construção de ilhas, no entanto, vai multiplicar a extensão de praias para 1.500 quilômetros. Isso inclui um arquipélago artificial com o formato do mapa-múndi que poderá ser visto do espaço.
De maneira tortuosa, Osama bin Laden realmente contribuiu para o boom da construção civil em Dubai. "Depois dos atentados de 11 de setembro, uma grande quantidade do dinheiro de investidores árabes que estava nos Estados Unidos e na Europa voltou para o Oriente Médio, em parte porque as restrições bancárias aumentaram", diz Mohammed Ahmed bin Abdul Aziz, subsecretário de Planejamento do Ministério da Economia dos Emirados Árabes. Esse capital precisava ser aplicado de alguma forma, e Dubai pareceu o lugar mais promissor para isso. O governo local, no entanto, cuida para que os investimentos de estrangeiros chovam apenas onde lhe convém. Empresas do exterior, por exemplo, só podem comprar propriedades em uma das 33 zonas livres de Dubai – com incentivos fiscais generosos. "Se não fosse assim, os chineses viriam para cá e comprariam cada pedacinho de nosso pequeno território", afirma Aziz.
Até meados do século passado, Dubai não passava de um pequeno entreposto comercial, que sobrevivia em condições primitivas da localização marítima, da pesca e da coleta de pérolas. Em 1958, jorrou petróleo em Abu Dhabi e, oito anos depois, em Dubai. Ao contrário do reino vizinho, no entanto, Dubai tinha reservas muito pequenas – estima-se que a última gota seja tirada em menos de uma década. Segundo a mitologia nacional fervorosamente repetida – o que não significa que não tenha base na realidade –, o grande feito da família Al Maktoum, que comanda o lugar há quase 200 anos, foi ter visão para perceber a necessidade de criar fontes alternativas de riqueza. Em 1979, o xeque Rashid bin Saeed Al Maktoum decidiu construir um porto artificial em Dubai. Hoje, está entre os dez mais movimentados do mundo. O xeque criou também uma zona franca vizinha ao porto, o embrião da tradição de incentivos fiscais que caracteriza o emirado hoje. Com isso, o país conseguiu se livrar da maldição da petrodependência e se abriu para o espírito empreendedor que o tornou um lugar único. A filosofia dos Al Maktoum sempre foi: "Construa e eles virão". Diz a lenda que o xeque Zayed bin Sultan Al Nahyan, presidente dos Emirados Árabes, antes de morrer, fez com que lhe prometessem que, em sua rota irrefreável rumo ao desenvolvimento econômico, Dubai ao menos não cederia à construção de cassinos. Todo o restante cardápio de tentações do consumismo e do liberalismo que os radicais islâmicos consideram atávico ao Ocidente, no entanto, pode ser encontrado ali. Isso inclui prostitutas de luxo e, com um certo esforço, drogas. As bebidas alcoólicas são permitidas nos hotéis e restritas aos consumidores não muçulmanos. Alguns hotéis, no entanto, têm uma oferta tão variada de bares e casas noturnas que a função de receber hóspedes parece mais um acessório. E, em lugares mais reservados, não é difícil ver jovens árabes detonando um escocês – o uísque, claro.
MILAGRE NO DESERTO
Tanta permissividade em pleno mundo muçulmano, em um lugar onde está sendo construída a maior mesquita do globo (em Abu Dhabi), e Dubai passa imune à praga dos atentados terroristas movidos a fanatismo religioso? A realidade não é tão simples. A Al Qaeda usava bancos de Dubai para lavar dinheiro, dois dos suicidas do 11 de Setembro tinham passaporte dos Emirados Árabes e a enorme população de trabalhadores estrangeiros – os cidadãos locais são apenas 15% do total –, na maioria vindos de países muçulmanos pobres, provê um ambiente de vulnerabilidade. O fato, no entanto, é que não existem grupos terroristas com base nos Emirados Árabes, tampouco o país é um celeiro de jovens fanáticos, violentos e revoltados – um fenômeno incontrolável na vizinha Arábia Saudita, celeiro de suicidas com destino ao Iraque. Em comum, dubaienses e sauditas têm a mesma matriz cultural – descendem das tribos de beduínos do deserto –, a fartura, embora irregularmente distribuída, do petróleo e a rigidez religiosa. Os homens mantêm a tradição de usar a túnica branca chamada dishdasha e de cobrir as mulheres de negro. São governados por chefes tribais que se proclamam nobres e controlam a burocracia religiosa com fartos subsídios. Comparado com a Arábia Saudita, no entanto, Dubai é um bastião de tolerância e flexibilidade. Em relação ao restante do Oriente Médio, com o quadro de horrores do Iraque, o Líbano sendo mais uma vez sugado para o abismo e a desgraça palestina aumentada atualmente por iniciativa própria, Dubai parece um milagre.
"O governo e a população de Dubai agem com a convicção de que é preciso, antes de tudo, ter prosperidade e desenvolvimento", diz o palestino Nabil Khatib, editor executivo da Al Arabiya, um canal de notícias sediado em Dubai que disputa com a Al Jazira a audiência do público árabe. Esse modelo influencia os países vizinhos, como Omã, o Iêmen e a própria Arábia Saudita. Todos querem imitar um pouco do ar de modernidade que Dubai criou para si. A questão é saber se conseguirão transpor as enormes barreiras culturais. "Queremos estimular os outros países da região a assumir o nosso modelo de abertura e concorrência global", diz o subsecretário do Ministério da Economia Abdulla bin Ahmed Al-Saleh. "Não podemos garantir o sucesso de nossa experiência se nossos vizinhos não adotarem o princípio do desenvolvimento econômico como meio para reduzir a violência." É precipitado e arriscado dizer que Dubai poderia sinalizar um caminho para tirar o Oriente Médio de seu estado de convulsão permanente. Mas o ambiente de miragens arquitetônicas que brotam do deserto propicia um sonho assim.
ENTRE A PRESSÃO SOCIAL DA TRADIÇÃO, O SHOPPING CENTER E O NAMORO POR CELULAR
VÉU COM JEANS
Ola Al-Alawi é uma típica e rica jovem de Dubai: faz faculdade e só sai na rua maquiada, grifada e coberta de preto (na foto à direita, fazendo compras com a irmã Aldana). Por baixo da túnica preta, está sempre dentro da moda ocidental, como aqui, em sua casa em um condomínio de luxo.
Os jovens de Dubai enfrentam o dilema entre tradição e modernidade de forma intensa e constante, refletindo os valores que os Emirados Árabes têm de equilibrar como nação. Da escolha sobre o que vestir aos relacionamentos amorosos, tudo lembra que eles vivem em um país com o olhar voltado para o Ocidente e os pés fincados no mundo islâmico. É comum ver rapazes vestidos com as túnicas brancas que são o traje nacional masculino e boné de beisebol no lugar do tradicional kaffiyeh, o lenço branco na cabeça. À noite, quando vão aos bares onde se fuma narguilé, os rapazes preferem jeans e camiseta. Garotas modernas como as irmãs Ola e Aldana Al-Alawi só saem em público de lenço na cabeça e abaia – vestido negro, tradicional na Arábia Saudita e nos países do Golfo, usado sobre as outras roupas para não deixar ver o contorno do corpo das mulheres. Em Dubai, o uso da abaia não é obrigatório, mas muitas mulheres não saem de casa descobertas por pressão dos pais, do marido ou até das amigas. "O bom da abaia é que, dessa forma, o que escondemos por baixo do pano fica reservado para o futuro marido", diz Aldana, estudante de contabilidade na Universidade Americana (nas faculdades de Dubai, todas as aulas são em inglês). Elas têm abaias, feitas por estilistas locais renomados, que chegam a custar 1 000 dólares. "Pela abaia dá para saber a que classe social pertence a mulher", diz Zena, a mãe das garotas. Ela própria não se sente obrigada a usar a roupa tradicional.
As irmãs são fascinadas por bolsas e sapatos de grife, os poucos acessórios que aparecem em público. "Mas por baixo da abaia também nos preocupamos com a qualidade das roupas, porque gostamos de estar bem vestidas quando vamos à casa das amigas", diz Ola, que já morou no Canadá e hoje estuda finanças na mesma universidade que a irmã. Uma beldade de longos cabelos e olhos que evocam os mistérios do Oriente, Ola já sonhou em ser modelo – é uma admiradora da baiana Adriana Lima. Mas desistiu quando lhe disseram em uma agência que devia começar distribuindo panfletos. Apesar de acatar a pressão social para se cobrir de negro em público, ela desfruta uma liberdade inimaginável em países vizinhos como a Arábia Saudita, onde as mulheres são proibidas de dirigir e de viajar sozinhas. No frescor de seus 20 anos, Ola diz que não pretende se casar. "Os homens não são confiáveis", queixa-se. Filha de um alto executivo da indústria do aço, ela pertence a uma classe social em que os casamentos arranjados diminuem e os namoros – por celular – prosperam.
2 comments:
Eu já tinha lido esta reportagem na revista, muito interessante.
Só não entendo isso:
"Elas têm abaias, feitas por estilistas locais renomados, que chegam a custar 1 000 dólares. "Pela abaia dá para saber a que classe social pertence a mulher", diz Zena, a mãe das garotas. "
Quanta idiotice. Como se fizesse alguma diferença aquelas abayas pretas horrorooooosas terem grife ou não. É tudo a mesma coisa...um bando de urubu. As muçulmanas me desculpem, mas acho o ó usar abaya num calor de 50 graus.
eu tb num gosto, tenho caustrofobia
....
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